2021, 3(2):42-47 e-ISSN: 2674-7103
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DOI: 10.37085/jmmv3.n2.2021.pp.42-47
Jornal Memorial
da
Medicina
© Copyright 2021
História da Medicina
Reminicências do antigo Hospital do Pronto Socorro do Recife: Primeiro
contato com a Morte Encefálica
Hildo Rocha Cirne de Azevedo Filho
Universidade de Pernambuco, Pernambuco, Brasil
Pensava em relatar o meu primeiro contato com a trágica ocorrência clínico-neurológica que
reveste a morte encefálica, contudo achei por bem colocar primeiramente o contexto que
vivíamos como acadêmicos concursados do antigo Hospital do Pronto Socorro do Recife nos
distantes anos de 1968 e 1969.
Naquela época ser acadêmico concursado daquele nosocômio, o mais importante hospital
de urgências da região, era motivo de inusitado orgulho para os estudantes de medicina de
então e maior fonte de aprendizado que o futuro médico poderia almejar. Éramos considerados
funcionários públicos, tanto que muitos anexaram posteriormente esse tempo de serviço para
requerimento de aposentadoria. A remuneração mensal consistia em um salário mínimo, o
que trazia bastante conforto para com as despesas que todo jovem se deparava. Sapatos de
marca comprados na Sapataria Inglesa, camisas de estilo compradas na ‘Torre Eiffel’, gaso-
lina para o velho fusca que o pai lhe dera, perfume Lancaster para melhor se apresentar às
jovens casadoiras da época, viagens para o Rio de Janeiro nas parcas férias que pudessem
ser obtidas, noitadas na ‘Cabana’ do Parque 13 de maio, idas com as namoradas à boate
Ferro Velho, presentes para as futuras esposas, e obviamente também para as mães, tudo isso
aquela ponderável quantia nos proporcionava.
Para admissão teríamos de nos submeter a rigorosa seleção que constava de prova escrita, oral
e pontuação do currículo, quando a despeito de boas notas, pois a seleção era classicatória,
precisámos nos colocar dentro do número de vagas ofertadas. Geralmente os concursos para
estudantes ocorriam em início de dezembro porquanto nessa ocasião os formandos abando-
navam os seus postos e os plantões teriam de ser preenchidos. Havia três tipos de seleção,
a do Pronto Socorro, a das maternidades e a dos DECs que eram os serviços de emergência
pediátrica clínica. Aqueles que já se inclinavam para ter como especialidades tocoginecologia
e pediatria geralmente davam preferência aos dois últimos certames. Para as vagas do HPS,
como era chamado, era reconhecido que aqueles que se submetiam ao exame ao m do
quinto ano tinham mais chances do que os colegas que estavam um ano atrás visto que esses
ainda não haviam cursado as cadeiras (hoje disciplinas) de cirurgia e traumatologia. No HPS
eram admitidos apenas três concursados por plantão e vez por outra os chamados
attachés
,
estudantes não concursados que cavam ‘peruandoos plantões, eram proibidos pela direção
de lá frequentar. Nós não tínhamos qualquer simpatia pelos
attachés
pois poderiam tomar
as nossas chances nas cirurgias e outros procedimentos que nos interessavam sobremaneira
se fossem protegidos por um dos médicos e principalmente pelo Chefe do Plantão, senhor de
todas as decisões naquelas 24 horas e que respondiam apenas e unicamente ao diretor. É
preciso que se ressalte que ser Chefe de Plantão do HPS naqueles anos era uma posição de
extremo destaque no nosso meio médico, talvez apenas só suplantada pelo status de professor
catedrático.
azevedoh@uol.com.br
Editado por
Juliana Ramos Andrade
Enviado: 25 de Setembro de 2021
Publicado: 30 de novembro de 2021
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Voltando aos
attachés
, eles também não participavam da
divisão do horário noturno conosco e desapareciam em
torno das 23 horas. Porém, e ainda pior, não dividiam
a escala para a retirada de
fecalomas
e curativos de
queimados.
Retirar um
fecaloma
era um dos procedimentos mais
desagradáveis e nauseabundos que tive a oportunidade
de participar na nossa prossão. Eram pobres pacientes
portadores de enormes
megacolons
devido à Doença de
Chagas, que frequentemente estavam há três a quatro
semanas sem defecar. Imagino que esse aterrorizante
evento não seja mais tão frequente nos dias de hoje.
Para tentar facilitar o processo fazíamos previamente
várias lavagens intestinais não só com glicerina em altas
quantidades, mas também anexávamos bicarbonato de
sódio a m de amolecer a cabeça’ do
fecaloma
. Os
pacientes eram submetidos a uma raque anestesia que,
além de lhes reduzir a dor ocasionada pelo procedi-
mento, produzia um acentuado relaxamento do esfíncter
anal que permitia que mais das vezes conseguíssemos
introduzir totalmente a mão no interior da ampola retal.
Vestíamos 2-3 aventais cirúrgicos, colocávamos três lu-
vas, vários gorros e máscaras embebidas em perfumes
ou qualquer líquido provido de odor agradável a m de
minimizar o horripilante odor que advinha daquele mar
de fezes que descia após termos ‘quebrado’ a cabeça’
do
fecaloma
.
Ficava um mau cheiro insuportável e por mais que to-
mássemos vários banhos em seguida parecia que o odor
se entranhara no nosso corpo e assim permanecia por
vários dias. Havia uma lista para a realização desses
procedimentos, que muitas vezes vomitávamos poste-
riormente, porém seguíamos rigorosamente a rotina sem
nunca nos esquivar dessa responsabilidade. Recordo que
participei dessas retiradas seis ou sete vezes. Acho que
essa infeliz complicação para aqueles pobres pacientes
se encontra reduzida nos dias de hoje porquanto não
vejo os estudantes comentando suas experiências com
esses casos. Como a Doença de Chagas é um problema
social relacionado sobremaneira as paupérrimas condi-
ções de moradia em casas feitas de taipa, é possível que
atualmente os programas sociais com vistas a melhoria
das condições de habitação e a devida informação
veiculada pelos agentes de saúde com o advento do
SUS possam ter reduzido essa trágica contaminação
pelo
Tripanosoma Cruzi
.
Outra responsabilidade dos acadêmicos concursados,
que também obedecia a uma escala religiosamente
respeitada, eram os curativos dos queimados, procedi-
mentos também desagradáveis embora em grau menor
do que a retirada dos
fecalomas
. As mulheres geralmente
apresentavam grandes queimaduras em tentativas de
suicídio embebendo o corpo em álcool e ateando fogo,
frequentemente após dramas familiares e amorosos. No
que concerne os homens, os acidentes de trabalho e os
choques elétricos concorriam como a principal causa.
Todavia, o que mais no agredia eram as grandes quei-
maduras em crianças muito comuns nas épocas juninas
ou então em decorrência de acidentes domésticos como
o estourar de um bujão de gás ou o derramar de líqui-
dos ferventes a partir de um fogão. Como não tínhamos
melhores facilidades de anestesista pois em geral havia
apenas um desses especialistas por plantão, os curati-
vos não se acompanhavam de abolição completa da
dor pois uma única ampola de Dolantina intramuscular
não era o bastante para dar conforto a esses pobres
pacientes. Ademais, a sala onde fazíamos esse proce-
dimento me parecia lúgubre e mal iluminada, sem falar
no pútrido odor do ambiente que embora diferente do
produzido por matéria fecal, era também absolutamente
insuportável.
Estava também a nosso cargo acompanhar o chefe de
plantão nas visitas que se fazia no início de cada turno
ao chamado ‘repousopara decidir as condutas deni-
tivas e preencher todas os prontuários de admissão e
relatórios cirúrgicos. Ressalte-se que naquela época os
poucos residentes existentes em Pernambuco não faziam
parte do corpo clínico das unidades de emergência do
estado.
Os melhores classicados nos concursos e de acordo
com a disponibilidade de vagas escolhiam os plantões
que eram considerados os melhores, como aqueles em
que tínhamos maiores chances de operar ou aqueles em
que havia um perl de interesse pela vida acadêmica e
pelo ensino. Ainda recordo que em dezembro de 1967,
após ndar o quarto ano médico, submeti-me à prova
escrita no majestoso prédio, ainda não funcionando, e
que seria o novo Hospital do Pronto Socorro do Recife,
o hoje querido Hospital da Restauração. Lembro que
extasiado quei com a magnitude daquela construção,
sonhando de vir algum dia nela trabalhar. A prova oral
foi realizada no enorme auditório nunca antes utilizado
e provido de excelente ar condicionado central, o que
era para nós uma grande novidade. O formato da prova
foi assaz interessante, cávamos nas cadeiras no fundo
do recinto e no palco cavam cindo examinadores. Re-
cordo José Costa Rocha com perguntas de cardiologia,
Ênio Castelar na clínica médica, Manoel Geraldo Viana
e Benoni Sá responsáveis pela arguição em cirurgia e
Assis Bezerra pela traumatologia. O interessante é que
os examinadores faziam as mesmas perguntas para
todos a m de fazer, acredito, um julgamento mais ade-
quado. Os que terminavam saiam do recinto e aqueles
que lá cavam não podiam se inteirar sobre o que lhes
fora arguido, além do mais, os que se retiravam não
teriam interesse em tentar informar o teor do que lhes
houvera sido perguntado uma vez que o certame era
classicatório.
Para 1968, o número de vagas era inusitadamente ele-
vado em virtude da maior parte dos concursados em
1967 serem doutorandos, havendo 17 ou 18 vagas a
serem ocupadas, das 21 disponíveis. Sem querer cometer
enganos, lembro que da nossa turma de quintanistas
passaram apenas cinco, a saber, eu, Luiz Peixoto de
Carvalho, Alexandre Arraes, Ângelo Frutuoso dos Anjos
e Enecy Calixto, sendo que esse último já era funcionário
burocrático da instituição. Os melhores classicados
escolhiam os plantões mais disputados, considerados
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os ’melhores’ em virtude de proverem mais condições
de ensino e aprendizado, frequentemente liderados por
professores universitários. Pude escolher o plantão da
segunda a noite e sexta de dia, cheado pelo famoso
cirurgião Júlio Carlos Porto Carreiro Junior, professor ad-
junto da cadeira de cirurgia abdominal que tinha como
catedrático o Professor Salomão Kelner. Ao contrário
dos dias de hoje e das outras unidades de emergência,
os plantões noturnos eram iniciados às 16 horas e se
estendiam até às 8 horas do dia seguinte. Os diurnos
com turnos de oito horas começavam às 8 horas da
manhã.
Tive a alegria e a honra de constatar que Luiz Peixoto e
Alexandre Arraes também escolheram esse plantão e a
partir de então pelos dois anos seguintes desenvolvemos
uma profunda e respeitosa amizade com uma cumplici-
dade inigualável no realizar e compartilhar sem erros
as nossas responsabilidades. Foi um tempo de muito
trabalho, mas de um extremo enriquecimento não só do
ponto de vista do aprendizado, como também por ter
propiciado o desenvolvimento de uma relação fraternal
que permanece até os dias de hoje com Alexandre, pois
o querido Peixoto há anos nos deixou, porém continua
tendo o seu legado representado pela sua companheira
de várias décadas, a nossa estimada colega e amiga
Lúcia. O nosso trabalho foi tão devotado e eciente
naqueles dois anos que o Chefe Porto nos denominou
de trio de ouro, sempre armando que só outro trio de
acadêmicos recebera dele tão honrosa classicação.
Para mim que queria ser cirurgião, trabalhar com Porto
Carreiro era o que de melhor podia esperar naquele
início de formação.
Porto era assistente de Salomão Kelner, herdeiro da esco-
la cirúrgica do seu mentor Professor Eduardo Wanderley
e eu já trabalhava com o Dr. Cesar Montezuma, também
discípulo e ex assistente do saudoso Professor Wander-
ley. Porto Carreiro foi um dos mais hábeis e destemidos
cirurgiões que já tive a oportunidade de conviver. Ex-
tremamente prático e resolutivo, sem esquecer a grande
bagagem teórica que trazia, as suas volumosas mãos
eram extremamente delicadas no uso dos instrumentos
cirúrgicos e no manusear dos sítios operatórios aborda-
dos. Lembro com nitidez de uma distante madrugada
de terça-feira, quando da chegada de um médico que
houvera sido assaltado e tivera um ferimento por faca na
parede anterior do tórax, tudo sugerindo que houvesse
uma lesão cardíaca. De imediato, o paciente foi levado
para a S.O., em seguida intubado, e como em um passe
de mágica em menos de 60 segundos ele abriu o tórax,
abordou o coração, identicou a ferida no átrio esquerdo
de onde o sangue jorrava de forma assombrosa, sustou
a hemorragia ocluindo o orifício apertando os bordos
com a mão esquerda enquanto solicitava uma pinça de
Satinsky
. O resto se tornou mais fácil, o ferimento car-
díaco foi devidamente suturado e o paciente sobreviveu
sem qualquer sequela.
De outra feita, em meados de 1969, em torno das
22h30, nunca me esqueci da chegada do presidente
do diretório acadêmico da Faculdade de Engenharia
que em um ponto de ônibus na Torre, em uma tentati-
va de assassinato, houvera sido alvejado no tórax por
policiais que estavam no seu encalço, por ser expoente
líder de oposição ao regime militar na ocasião vigente.
O hospital rapidamente se encheu de policiais queren-
do chegar junto ao paciente, e de forma extremamente
exemplar, Porto se pôs na entrada da emergência e disse
a partir daqui ninguém ultrapassa, ele é meu paciente
e não permito que ninguém o toque a não ser a minha
equipe. Imediatamente o levamos ao Raio-X onde de-
tectamos um extenso hemotórax que foi imediatamente
drenado, contudo infelizmente o projétil se localizara no
interior do canal raquiano, destruindo completamente a
medula espinhal e o deixando para sempre paraplégico.
Posteriormente, ele foi transferido para o Hospital Pedro
II onde foi operado pelo Professor Manoel Caetano de
Barros que realizou uma laminectomia e removeu o dito
projétil. Interessante ressaltar que 30 anos após, a minha
tese para o concurso de Professor Titular de Neurocirurgia
da Universidade de Pernambuco versou sobre “Lesões da
Medula Espinhal e da Cauda Equina produzidas por pro-
jéteis de arma de fogo” e lamentavelmente no ano 2000,
como agora, essas lesões são majoritariamente irrecupe-
ráveis, tendo a cirurgia muito pouco a oferecer. Esse é
um capítulo da medicina que possivelmente a utilização
de células tronco possa vir a ajudar na regeneração de
partes do sistema nervoso central.
Éramos praticamente responsáveis por quase tudo que
acontecia nos plantões. Sempre cava um atendendo as
urgências na traumatologia enquanto os outros dois se
ocupavam dos boxes de adultos e crianças. Fazíamos
todas as suturas, imaginem sem luvas, apenas passando
previamente álcool nas mãos, dávamos os primeiros so-
corros nas intoxicações exógenas, geralmente mulheres
que tomavam as mais variadas drogas para dar cabo
à vida, quando se fazia necessário extensas lavagens
gástricas. Atendíamos os traumas fechados e abertos e
os abdomens agudos infecciosos.
Era um comportamento comum dos médicos naquela épo-
ca carem sentados em uma sala que havia no outro lado
do corredor. Todavia, no nosso plantão o Chefe Porto,
dando o bom exemplo, fazia com que os seus assisten-
tes atendessem também nos boxes. Quando um de nós
estava em cirurgia o outro cobria toda a emergência. Da
mesma forma, quando a traumatologia estava operando,
cobríamos também aquele ambulatório, guardando as
reduções sob anestesia geral para quando o anestesista
terminasse o seu procedimento, em virtude de só haver
um especialista por turno.
No início do sexto ano, Alexandre Arraes resolveu fazer
a especialidade Traumato-Ortopedia, em razão de vir
acompanhando o Professor Hélio Lucio de Souza, e as-
sumiu integralmente aquele setor. Eu e Peixoto camos
satisfeitos porque tínhamos como objetivo um treinamento
maior na cirurgia geral.
A partir de 23 horas a maioria dos prossionais se reco-
lhia ao alojamento dos médicos, havendo uma escala em
que um cirurgião e um clínico cavam no andar térreo
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supervisionando os atendimentos. Embora no plantão
do Chefe Porto isso não fosse um problema, acordar
um médico no meio da noite somente se fazia quando
era absolutamente imperioso visto que independente da
necessidade o contato vinha sempre acompanhado por
uma sonora reprimenda. O quarto cava às escuras e
deveríamos saber a cama que a pessoa a ser acordada
geralmente dormia, porquanto elas tinham dono e ai
de quem ousasse se deitar naquela ‘propriedade. Nós
tínhamos o nosso quarto com três camas no outro lado
do corredor e também não permitíamos que nenhum
estagiário nelas tocasse, embora no mais das vezes a
noite transcorresse sem nenhum de nós vir a utilizá-las.
Os banheiros cavam ao lado do alojamento dos -
dicos que também tinham prioridade para o seu uso.
Dividíamos a noite em turnos de duas horas a partir da
meia-noite, mas essa escala quase nunca era cumprida
porque passávamos quase sempre acordados. Às seis
horas da manhã, Porto se reunia conosco para saber os
últimos detalhes do plantão, a m de passar para o chefe
que o substituiria. Ao contrário de hoje, bons tempos do
passado, a rendição era homem a homem para todos os
membros, ou seja, só podíamos sair do hospital quando
o nosso respectivo
rendeiro
chegasse.
Para mim no quinto ano médico o plantão da sexta-fei-
ra era um problema, pois às 14,00 horas era a aula
teórica de neurologia no Hospital Pedro II e o professor
fazia nominalmente a chamada não permitindo que
ninguém assinasse pelo colega ausente, e ademais eu
devotava o máximo interesse em assistir aquelas aulas,
movido pela minha já decidida inclinação por aquela
especialidade. Por conseguinte, muitas vezes tive de
pagar para que um colega concursado casse por mim
algumas horas o que não era aceito de bom grado pelo
chefe em razão de alterar a rotina do serviço, no que
ele estava certo.
Era durante as noites que tínhamos as maiores opor-
tunidades de operar, sempre assistidos por um
staff
.
Durante o dia geralmente os plantões eram mais corridos
com os cirurgiões querendo largar rigidamente às 16
horas a m de ainda ir para os seus consultórios priva-
dos. Durante o sexto ano, operei hérnia encarcerada,
apendicite aguda, lesão traumática do jejuno, gravidez
ectópica rota, ferimentos abdominais por arma branca e
de fogo, tendo sido, portanto um excelente laboratório,
fundamental para iniciar a neurocirurgia que eu almejava
me especializar. Cheguei mesmo a operar um hematoma
subdural crônico, minha primeira intervenção neurocirúr-
gica, gentilmente cedida por Hélio van der Linden que
acabara de chegar do seu estágio em Paris, no histórico
Hospital Salpetriére.
A equipe médica cheada pelo estimado Chefe Porto
era fantástica, uma verdadeira academia. Os cirurgiões
eram Tibério Moreno de Siqueira, Antônio Andrade e
Artur Souza Leão, excelentes prossionais que nos tra-
tavam de forma cavalheira como futuros colegas, como
de resto todos os outros membros do grupo assim nos
tratavam. Os clínicos, cheados pelo Dr. Vieira Brasil,
eram Carlos Alberto Correia de Araújo (Hematologista
e Professor da Cadeira de Terapêutica Clínica), Vitorino
Spinelli, Ede Oliveira e Luiz Fernando Maciel, todos liga-
dos à cadeira da Primeira Clínica Médica do Professor
Amaury Coutinho. Como traumatologistas tivemos a
princípio Manoel Caldas Temporal, com a sua famosa
insônia, e posteriormente o Professor Hélio Lucio de Sou-
za quando do seu retorno de estágio em São Paulo. Foi
acompanhando Hélio Lucio que fez Alexandre Arraez se
decidir denitivamente pela Traumato-Ortopedia. O otor-
rinolaringologista era Fernando Carneiro Leão, o nosso
querido Louro, gura maior que a todos cativava pelo seu
temperamento ameno e a forma gentil de se comportar.
Devo a Louro o ensinamento e a possibilidade de fazer
as minhas primeiras traqueostomias.
Além das emergências que chegavam ao hospital das
mais diversas maneiras, como os queimados por ocasião
do ciclo junino, os acidentes e agressões nos grandes
feriados principalmente no período carnavalesco, o
hospital prestava um serviço semelhante ao SAMU de
hoje. Havia 3 a 4 ambulâncias que faziam atendimentos
externos, mercê de solicitações através de uma central
telefônica na ocasião já obsoleta. Lembro-me bem dos
motoristas e dos ‘enfermeiros’ que geralmente mais idosos
talvez fossem designados para essas atribuições como
uma maneira de aliviá-los de uma carga mais desgas-
tante nos boxes. O material de primeiros socorros se
encontrava em uma pesada caixa de madeira onde havia
as drogas mais usadas e instrumentos para pequenas
suturas. Não constavam soros para infusão venosa nem
material para intubação e reanimação. A bem da verda-
de, para uma boa parcela das emergências, a maioria
dos ‘enfermeiros’ com vários anos naquela labuta, não
precisava de médicos para tratar as patologias e resolver
os problemas que nas saídas teriam de dar conta. Por
turno, havia em torno de 8 a 10 saídas.
Apanhava-se um atropelado em via pública ou vítimas
de acidentes automobilísticos, sem ter o devido cuidado
que atualmente esse resgate se reveste. Íamos buscar
um bêbado que estava fazendo desordem na zona de
meretrício mais das vezes recolhido ao comissariado da-
quele bairro e frequentemente, parcialmente recuperado
da intoxicação alcoólica pelas ‘carícias’ que já houvera
recebido da autoridade policial. Nas noites dos meses
chuvosos, os asmáticos sofriam bastante aparecendo
com frequência na emergência, tanto que conhecíamos
vários pelos nomes. Aqueles que moravam longe e não
podiam se locomover, dirigiam-se aos comissariados
dos bairros e de lá telefonavam pedindo socorro. Os
comissariados de polícia serviam como locais onde a
população mais humilde se dirigia para buscar ajuda
médica e socorro em virtude da escassez de recursos de
telefonia. Isso era mais frequente nos morros da zona
norte do Recife, onde cavam esperando uma injeção
de glicose com aminolina. Sem esquecer que as noites
chuvosas também propiciavam os edemas agudos do
pulmão nos cardiopatas crônicos. Fazíamos a medicação
de emergência por via endovenosa, composta de glicose,
cedilanide, lasix e dolantina, além do “garroteamento
alternante de três membros e aguardávamos a dispneia
melhorar. Se melhorasse, de lá mesmo o paciente era
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liberado, caso contrário era transportado para o hospi-
tal. Por m, havia também o atendimento em residência,
onde pequenas emergências clínicas eram tratadas,
em caso de dúvida quanto a uma maior gravidade se
removia para o Pronto Socorro. Com tão poucos recursos
e a forma quase artesanal dos atendimentos, essa pres-
tação de serviço só era possível mediante termos uma
população bastante menor, um trânsito menos caótico
e uma sociedade mais pacíca com reduzidos níveis de
agressividade, principalmente quando se compara após
meio século.
De acordo com as normas do serviço, só os médicos c-
nicos teriam a responsabilidade de participar de saídas
para residências, cando para os acadêmicos concursa-
dos a tarefa de atendimento em via publica, e o eventual
resgate se necessário, como também em comissariados.
A autorização para o deslocamento das ambulâncias
cava a cargo do clínico chefe que no nosso plantão era
o Dr. Diógenes Vieira Brasil, a época parecendo idoso,
mas sicamente vigoroso com a sua voz tonitruante que
ressoava nos corredores do velho hospital quando nos
chamava. Ao que parecia, o Dr. Brasil já poderia se apo-
sentar, porém no meu entendimento aquelas 24 horas
semanais de plantão serviam como um agradável evento
no seu cotidiano como médico e pessoa.
Quando um de nós participava de uma saída nas ambu-
lâncias os boxes da emergência teriam de ser cobertos, e
se fosse á noite quem por ventura estivesse descansando
deveria descer e assumir o posto até que regressássemos,
razão pela qual, como mencionado acima, quase sem-
pre as nossas camas amanheciam intocadas. Todavia,
nenhum outro acadêmico não concursado, que por se-
rem protegidos por algum médico acompanhavam como
voluntários os plantões, ousava penetrar no nosso quarto
e usufruir das nossas camas. A partir de meados do sexto
ano, após termos conquistado a conança do Dr. Brasil,
ele começava a nos designar para atendimentos em do-
micílio, geralmente durante as madrugadas para que os
médicos não saíssem dos seus repousos.
Nunca poderia esquecer, um dos fatos mais trágicos
que tive a oportunidade de presenciar, durante mais de
meio século de vida médica e ainda hoje eles voltam
aos meus olhos de uma forma bastante nítida. Em torno
das 22 horas de uma segunda-feira, fui informado que
deveria realizar uma chamada em domicílio. O local
era na Rua do Progresso, muito próximo ao hospital, e
eu pensei que logo retornaria visto que estava escalado
para participar de uma cirurgia para tratamento de úlce-
ra péptica perfurada, que seria colocada em sala, assim
que o único anestesista (de triste memória) terminasse um
procedimento da traumatologia.
O endereço da Rua do Progresso se localizava quase na
esquina com a Rua das Ninfas, em cujos arredores se
situava o suntuoso palacete de Adelmar da Costa Carva-
lho, rico comerciante e que tinha sido deputado federal
e presidente do Sport Clube do Recife. Perto do local
morara o nosso dileto colega e amigo Sergio Lamartine.
O local do atendimento ainda hoje existe quase que no
mesmo estilo. Tratava-se de um prédio tipo ‘caixão’ que
na verdade acomodava duas habitações com entradas
separadas. A urgência era para o andar superior e logo
ao transpor o portão fui tomado de assalto por assus-
tadores gritos de terror, medo e sofrimento de uma voz
feminina e pelo inesquecível choro de uma criança que
parecia ter três a quatro anos. Acompanhado pelo enfer-
meiro, subi a escada aos pulos e entrei no apartamento
que estava com a porta aberta. Adentrei então ao quarto
do casal e me deparei com a cena mais dantesca que
a minha mente ainda hoje não esqueceu.
Na cama do casal, deitado sobre um mar de sangue,
encontrava-se um homem jovem com a mão direita ainda
segurando um revólver. Havia o infeliz cidadão dado
um tiro na sua região temporal direita, e sua esposa
abraçada ao corpo inerte urrava de dor e segurava a
cabeça do marido gritando para que ele acordasse.
Agarrada à mãe, estava uma menina aterrorizada, com
um dos choros mais pungentes que já presenciei, gritan-
do também para que o pai acordasse. Pelo que soube
depois, e para tornar o contexto ainda mais desolador,
tudo indica que o casal houvera tido uma altercação e
a esposa teria ameaçado deixar o marido e sair de casa
levando a criança.
Afastei então as duas criaturas e comecei a examinar a
situação. O paciente não respirava e não tinha pulso.
Iniciei respiração boca a boca, uma vez que a mala
de primeiros socorros não contemplava material de in-
tubação e ‘ambu’, tendo solicitado ao enfermeiro para
fazer massagem cardíaca. Após alguns minutos, e como
continuasse em assistolia, solicitei que fosse preparada
adrenalina (muito útil nos atendimentos noturnos para os
asmáticos crônicos) em uma seringa com agulha longa
e z uma injeção intra cardíaca. Em minutos chegava
um cunhado da vítima, que eu conhecia de atividades
esportivas, e que de imediato se encarregou de cuidar
das duas pobres criaturas.
Como o coração tivesse voltado a ter batimentos, mesmo
realizando respiração boca a boca, decidi transportá-lo
para o hospital, ocasião em que o cunhado juntamente
com o enfermeiro, e o motorista da ambulância que
em virtude do alarido se juntara a nós, descemos com
grande diculdade a estreita escada e o colocamos na
ambulância. Isso feito, rumamos para o Pronto Socorro
o que não tomou mais que cinco minutos.
Ao chegar à emergência, eu estava banhado de sangue
literalmente da cabeça aos pés, tendo providenciado
imediatamente a intubação oro traqueal e a colocação
daquele pobre ser humano em ventilação controlada mer-
cê do emprego do já obsoleto respirador tipo Takaoka.
Em seguida, após instituir manobras de normalização
hemodinâmica, tive condições de realizar o exame neu-
rológico possível para aquela situação. Além da apneia,
constatei que ambas as pupilas se encontravam totalmen-
te dilatadas e sem qualquer resposta à luz. Não havia
reexo corneal nem de tosse à manipulação da cânula
traqueal, com ausência completa de qualquer resposta
aos estímulos dolorosos potentes. Estava, portanto, em
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coma profundo, grau 3 na Escala de Coma de Glasgow
que apenas viria a ser descrita em 1974 e que estima
o nível de consciência de 3 a 15, sendo esse último
considerado normal.
Suturei o pequeno ferimento pérfuro contundente loca-
lizado dois centímetros acima do arco zigomático na
região temporal direita, não se observando orifício de
saída. O Raio-X simples do crânio, único exame radio-
gico que se dispunha, demonstrava que o projétil havia
passado pela região central do encéfalo e se alojado na
porção posterior do osso temporal contralateral. Como
não dispúnhamos de UTI ou Sala de Recuperação e me-
diante autorização do chefe do plantão, levei o paciente
para o centro cirúrgico no 1° andar e o coloquei em
uma pequena sala usada para pequenos procedimentos
que necessitavam de anestesia. Recorde-se que havia
apenas duas outras salas para grandes operações,
uma para a cirurgia geral e outra usada mais pela
traumatologia.
Em seguida, precisei entrar em contato com o neuroci-
rurgião de sobreaviso. Plantão permanente com esses
especialistas se vericou em 1970 quando o hospital
foi transferido para as majestosas novas instalações do
Pronto Socorro, o hoje Hospital da Restauração. Os
Drs. Albino Cunha, Hélio van der Linden e Ian Pester
eram os neurocirurgiões de sobreaviso se alternando a
cada 24 horas, e como não tinham telefone em casa
a ambulância precisava ir buscá-los com o motorista
tendo muitas vezes de entrar nas residências, bater
nas janelas para acordá-los e trazê-los para o hospital.
Durante os plantões diurnos era sempre complicado
encontra-los nos locais de trabalho. É bom lembrar que
naqueles idos nem o bip houvera ainda chegado à
nossa terra.
Naquela noite Ian Pester era o sobreaviso, quando o
mesmo chegou e orgulhosamente lhe apresentei o caso,
mencionando o resgate do paciente em condições tão
adversas, quei chocado e decepcionado quando ele
me informou: ‘nada a fazer.
Por mais que eu já me interessasse pelas patologias do
sistema nervoso central, aquilo era muito estranho e
inaceitável para mim. Esse pobre ser humano tão jovem
vai morrer, perguntei eu com um misto de desespero e
revolta. Em 1969, ainda se entendia muito pouco do
conceito e do status de morte encefálica e muito menos
se falava em utilizar órgãos dessas infelizes criaturas
para transplantes ou ainda na possibilidade de desli-
gar o ventilador. Ele me respondeu, deixe-o aí com a
venóclise e o respirador, a natureza vai se encarregar
do desfecho que redundará em uma parada cardíaca
dentro de poucos dias.
Após esse diagnóstico, eu me dirigi para o local onde
a esposa e vários familiares se encontravam esperando
ouvir o que o especialista dissera. Ao informá-los que era
um caso perdido e que a medicina de nenhuma maneira
teria como ajudá-lo foi outro drama incomensurável, com
a esposa e os demais entes chorando de uma forma tão
desesperadora que ainda hoje quando fecho os olhos
recordo nitidamente a trágica cena. Todos os dias eu ia
visitá-lo e encontrava a pobre mulher envolta em um mar
de lágrimas, agarrada à mão do esposo e implorando a
Deus por um milagre. Após 4-5 dias a mãe natureza se
encarregou de dar por terminado o sofrimento daquele
momento e o coração do jovem marido nalmente parou.
Felizmente eu não estava no hospital quando do desen-
lace. Nunca mais soube dessas duas infelizes pessoas, a
esposa e a lhinha, imagino que tenham carregado por
toda a vida a cruz desse indescritível e trágico momen-
to, que certamente deve ter causado traumas e feridas
psíquicas quase impossíveis de cicatrizar.
Ao longo de várias décadas de vida prossional, sobre-
maneira na minha área, tenho me defrontado centenas
de vezes com esse infausto quadro. Nunca me acostumei
com o enfrentar essa trágica responsabilidade, e acredito
que nenhum médico na verdadeira acepção da palavra
possa vir a se acostumar.
É dilacerante informar que o seu familiar querido não
mais possui atividade cerebral e que, por conseguinte
está morto, embora ainda tenha batimentos cardíacos.
Toda vez que temos de dar essa notícia nós também
morremos um pouco e para mim sempre se constitui em
um fardo bastante penoso.
Talvez hoje com o programa de transplantes de órgãos é
possível que a dor seja menos cruel, eu não sei. É impor-
tante ressaltar que algumas famílias respondem de forma
bastante diferente. Algumas resignadas, fortalecidas pela
fé que são possuídas e acreditando que a vida na terra
é apenas uma passagem. Outras irrompem em uma re-
ação de dor intensa e de total desespero. Por m, outros
familiares respondem agressivamente não concordando
com o diagnóstico e não aceitando serem abordadas
pelo grupo de transplantes. Talvez esses últimos tivessem
um relacionamento mal resolvido com o falecido e estives-
sem implorando por mais tempo a m de poder reatar
a relação e recuperar o tempo perdido.
Enm, essa é mais uma triste realidade das muitas que
enfrentamos no nosso dia a dia e queira Deus que nunca
nos acostumemos com ela.
A VIDA É TÃO CURTA PARA QUE NOS ATERMOS A PRO-
BLEMAS DE MENOR SIGNIFICÂNCIA!