2021, 3(2):48-50 e-ISSN: 2674-7103
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DOI: 10.37085/jmmv3.n2.2021.pp.48-50
Jornal Memorial
da
Medicina
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História da Medicina
Tristes reexões em tempos do Covid-19...*
Hildo Rocha Cirne de Azevedo Filho
Universidade de Pernambuco, Pernambuco, Brasil
Tenho mais de 70 anos e sou professor titular da Universidade de Pernambuco, cargo con-
seguido através de concurso público de provas e títulos. Como médico com mais de 50 anos
dedicados ao serviço público, nas áreas da assistência, ensino e pesquisa, acredito ter o direito
de me expressar com farei neste texto, o qual provavelmente irá desgostar inúmeros gurões
dessa república.
Vivemos globalmente uma crise nunca vista na história recente da humanidade, talvez só nas
duas guerras mundiais, pois além das centenas de milhares de vidas ceifadas presenciaremos
quase que certamente um profundo colapso da economia mundial, com milhões de empregos
perdidos e a bancarrota de vários países mesmo aqueles em situação nanceira mais equili-
brada.
Por mais que o remédio seja doloroso, enfrentando um inimigo ainda quase desconhecido, o
mais rígido distanciamento social parece ser o único meio efetivo para reduzir um caos maior,
evidenciado por uma letalidade mais elevada do que a projetada, acompanhada pela falência
dos sistemas de saúde. Enquanto isso, esperemos que os nossos cientistas cheguem a tempo de
produzir uma vacina que possa reduzir o número de vítimas, que no momento parece aterrorizan-
te, embora em curto prazo não seja provável que essa descoberta venha a acontecer. Contudo,
se voltarmos na história, esse milagre já foi observado no passado quando a Inglaterra sofria o
pesado bombardeio da aviação germânica. Naquela época, pesquisadores da Universidade
de Oxford silenciosamente pesquisavam e desenvolveram a penicilina cristalina. A nova droga
pela vez primeira foi utilizada em um ser humano na
The Radcliffe Inrmary
, precisamente no
dia 12 de fevereiro de 1941. Esse importantíssimo avanço cientíco foi fundamental para o
esforço bélico das forças aliadas, salvando milhares de civis e combatentes, tendo sido mantido
como segredo de guerra visto que os alemães por mais que tentassem nunca possuíram o novel
agente bactericida.
No nosso país, imaginem a imensidão da catástrofe se não tivéssemos o Sistema Único de
Saúde (SUS), juntamente com aqueles que nele acreditam e que nele trabalham com toda a
dignidade. Seria impossível enfrentar essa pandemia sem uma única estrutura prossionalmente
organizada e controladora de todas as atividades e decisões, estabelecendo políticas emer-
genciais em consonância com as maiores autoridades sanitárias. Costumo armar que o SUS
foi o maior instrumento de inclusão social desde o advento do salário mínimo pelo Presidente
Getúlio Vargas.
Todavia, ao longo de mais de três décadas, o SUS vem sendo em muitos casos mal gerencia-
do, negligenciado até, pessimamente nanciado e em algumas vezes assaltado por alguns
gestores impatrióticos, bastando recordar escândalos escabrosos veiculados pela imprensa em
azevedoh@uol.com.br
Editado por
Juliana Ramos Andrade
Enviado: 25 de Setembro de 2021
Publicado: 10 de dezembro de 2021
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ASAA
Azevedo Filho HRC
Tristes reflexões em tempos do Covid-19...
um passado recente. Para piorar a situação, a falta de
recursos para o SUS se vê agravada pelo mesmo estar
inserido em uma máquina estatal paquidérmica, sempre
burocraticamente travada, disfuncional e frequentemente
encharcada por denúncias de corrupção. Na verdade,
essa colossal máquina estatal, em todos os níveis e em
todos os poderes, consome uma enorme, censurável e des-
necessária quantidade dos nossos recursos para mantê-la
funcionando como atividade meio, e com suas mazelas
asseguradas, quando se olvidam a responsabilidade do
poder público com as atividades m do estado que são
em última análise a saúde, a educação, a segurança, o
bem estar social e a infraestrutura.
Se a Constituição de 1988 trouxe o SUS como ponto
positivo, por outro lado permitiu que boa parte da classe
política se apoderasse dos seus preceitos democráticos
para promover o maior assalto a uma nação que a civi-
lização ocidental já presenciou. No momento presente,
como um favor para que o Ministério da Saúde possa
combater o COVID 19, os nossos legisladores concordam
em doar cinco a dez bilhões de reais das suas verbas
(NOSSO DINHEIRO) que seriam destinadas através de
suas emendas, com honrosas exceções, para alimentar
as bocas vorazes dos seus apaniguados e seguidores,
medidas não republicanas, fundamentalmente eleitoreiras
e que redundariam em maior número de votos em elei-
ções futuras. Nesse momento de pânico e de sofrimento,
abrigados sob a criminosa escusa quando alegam a não
observância da ordem regimental do legislativo federal,
seus dirigentes se recusam a abrir mão, em prol do esforço
na luta contra a pandemia, dos três bilhões de reais que
eles nos impuseram para que absurdamente nanciásse-
mos as próximas eleições.
Hoje o nosso SUS luta bravamente para se preparar e
se equipar emergencialmente para enfrentar essa terrível
calamidade que lamentavelmente ainda se encontra em
estágios iniciais, cuja tarefa heroica e hercúlea seria
na situação atual extremamente amenizada se desde
1988 houvesse se estabelecida uma política de estado
no sentido de torna-lo minimamente adequado para o
nosso povo. Carências de hospitais, emergências perma-
nentemente superlotadas, longas listas de espera para
cirurgias ditas não urgentes, consultas ambulatoriais de
especialistas sendo marcadas com três, quatro, seis me-
ses de espera, fazem parte da nossa realidade diária. É
admissível se considerar como não urgente ou se aceitar
um ser humano viver um ano ou mais com uma sonda na
bexiga enquanto espera para operar um tumor benigno
da próstata? Coloquem-se senhores lideres dessa nação
na posição desses pacientes, talvez seja difícil para os
mesmos entenderem porque a maior parte quando tem
qualquer problema de saúde procura imediatamente
os grandes hospitais particulares, principalmente os de
São Paulo e com despesas pagas através do bolso do
contribuinte.
Com o Ministério da Saúde dispondo de um parco or-
çamento de 130 bilhões de reais, nós nos esquecemos,
e nesse grupo incluo uma grande porção dos principais
gestores dos três poderes da república e boa parte da
chamada grande imprensa, dos 500 bilhões de reais que
nos roubaram apenas no dito esquema ‘Petrolão. É pro-
vável que atualmente o denominado esquema ‘Mensalão
seja considerado por alguns uma obra de cção e não me
espantaria com a possibilidade da Operação Lava a Jato,
mercê do interesse daqueles que detêm poder e temem
a possibilidade de serem pela mesma julgados e aprisio-
nados, vir pouco a pouco se esvaziando, sendo por certo
do interesse dos assaltantes do Brasil que desapareça nas
brumas da história. Não acredito que haja mais nenhum
preso decorrente do malsinado esquema do mensalão,
talvez apenas o ‘laranja’ Marcos Valério. Na pilhagem
do petróleo, os poucos que ainda permanecem por trás
das grades, não tenho dúvidas, em um futuro bem próximo
serão libertados pelas instâncias judiciais superiores. Não
se espantem se no futuro a operação Lava a Jato vier a
ser considerada mediante plano arquitetado por todos
os meliantes envolvidos, e seus protetores, como o agente
criminoso dessa trágica história.
É revoltante quando se observa um estado gigante, inope-
rante e deciente para com os seus deveres com os seus
concidadãos, ter decidido construir arenas de futebol
gigantes, hiperfaturadas e sem nenhuma função social
associadas a obras desnecessárias e também manancial
para enriquecimento ilícito, com o to de sediar copa
do mundo de futebol e olimpíadas, decisões totalmente
descabidas e sabidamente destinadas a aumentar o nosso
endividamento interno, a falência das nossas contas e o
deleite daqueles comparsas convidados a participar desse
manjar da corrupção.
Também é revoltante se constatar quando os gestores
atuais em uma atitude de puro farisaísmo propagam que
vão reduzir os custos da máquina pública para ajudar
na luta contra o COVID 19. Por que não reduziram esses
custos, aparentemente tão fácil e rapidamente, antes dessa
catástrofe se instalar? Por que no passado não reduziram
o número de assessores, carros ociais, penduricalhos
no sentido de aumentar a disponibilidade de ofertar à
sociedade um ensino melhor, uma segurança adequada
e uma saúde condizente com aquela que os líderes da
república buscam para seus entes queridos quando ne-
cessitados?
É revoltante ver o ilustre Ministro da Saúde mendigar
por alguns bilhões para a compra de equipamentos. É
revoltante, repito, sabermos que a crise do COVID 19
aumentará em cerca de 300 bilhões de reais o nosso
endividamento interno no ano de 2020 e pior ainda nos
sentimos quando vemos que apenas no esquema petrólão
nos levaram 500 bilhões, isso sem falar nas outras institui-
ções que foram vítimas desses meliantes.
É revoltante se ver a construção emergencial de hospitais e
a abertura de leitos de leitos de UTI, seguramente a preços
estratosféricos pois a situação favorece a não necessidade
de licitação, estruturas essas que possivelmente serão
futuramente abandonadas e não agregadas à atividade
médica assistencial do SUS. Nessa hora trágica, ocasião
em que a nação está em risco pela possibilidade de
contabilizar milhares de vidas ceifadas e pelo risco de
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Tristes reflexões em tempos do Covid-19...
enfrentar uma derrocada geral de todo o nosso sistema
de saúde, onde estavam os nossos gestores que não
ouviram os clamores, as sugestões, as reinvindicações
e até mesmo as intimações das entidades médicas mais
representativas? Onde estavam os nossos gestores quando
o Conselho Federal de Medicina clamava por mais verbas
para o SUS, quando exigia que as vagas necessárias de
prossionais da saúde fossem preenchidas apenas atra-
vés de concursos públicos e que fossem denitivamente
inseridas em uma carreira de estado? Onde estavam
os nossos gestores quando os conselhos regionais de
medicina exigiam que mais hospitais fossem abertos,
mais vagas de UTI fossem asseguradas ao SUS e que
mínimas condições de trabalho e remuneração fossem
asseguradas aos prossionais de saúde? Onde estavam
os nossos gestores, que agora empunham a bandeira
do necessário isolamento social, quando se solicitava a
erradicação das favelas através de um projeto decente de
habitação para pessoas de baixa renda que nitidamente
reduziria o compulsório connamento com vários mem-
bros de uma família vivendo em um único cômodo? Onde
estavam as autoridades que hoje solicitam que lavemos
as mãos e nos higienizemos repetidamente, mas que
aceitam a realidade da maioria das cidades, grandes e
pequenas, terem menos de 50% da sua área dotada de
saneamento, levando a uma completa ausência de um
sistema de águas e esgotos na suas áreas periféricas,
resultando em connamento compulsório dentro de um
contexto de sujeira crônica por falta do abastecimento
de água, nociva consequência para todos os aspectos
do ser humano e que claramente resultará em uma maior
taxa de infecções e da letalidade na catástrofe que ora
atravessamos e em outras que eventualmente poderão
acontecer?
Portanto nessa hora, o que o cidadão pode dizer é Basta!
Basta de Hipocrisia! Basta de incompetência! Basta de
atitudes não republicanas! Basta de corrupção! Basta
de ouvir tanta baboseira tais como: ‘não há nesse país
ninguém mais honesto do que eu’!
Espero por m, que sofridos, assustados, milhares cho-
rando a perda de entes queridos, possamos sair desse
pesadelo mais fortes, mais comprometidos com a cida-
dania e para que também nos livremos dessa tragédia
comportamental e da banalização do delito que assola a
nossa querida nação, modicando totalmente a partir de
agora o comportamento na escolha dos nossos governan-
tes, pedindo a Deus que nos ilumine para que possamos
escolher aqueles que construirão um Brasil digno em que
os nossos netos tenham orgulho de nele viver, pois para
a minha geração a esperança quase que desapareceu.
* Tristes Reexões em Tempos de Covid 19 - texto publicado na Folha de Pernambuco em 08 de abril de 2020