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ASAA
Azevedo Filho HRC
O Exame Para Fellow of the Royal College of Surgeons of Edinburgh
Acontece, todavia que logo nos primeiros dias a assis-
tente social me informou que o ‘simpático’ paciente era
chefe de uma das mais temíveis gangs organizadas da
cidade. Muito pelo contrário, a sua biograa (ou folha
corrida) em nada parecia com o comportamento alegre
e cooperativo no hospital.
O próximo passo seria lutar para conseguir uma tomogra-
a computadorizada do encéfalo que, apesar dos artefa-
tos que por certo o projétil produziria, detectaria a real
posição do corpo estranho, a sua relação com estruturas
vasculares circunvizinhas e possíveis lesões pelo mesmo
produzidas no parênquima encefálico.
Na fase pré-SUS, todos aqueles desprotegidos e sem
qualquer vínculo empregatício recebiam o infame rótulo
de indigentes, enquanto que para os previdenciários
havia um setor no 7° andar onde lhes era propiciado
acomodações mais confortáveis, melhores cuidados de
enfermagem e até refeições mais apetitosas. Além do
mais, poderiam car com acompanhantes, ao tempo
proibidos nos outros setores do hospital. Para os pre-
videnciários as tomograas eram conseguidas rapida-
mente, porém para os pobres indigentes era uma tarefa
hercúlea com uma taxa média de espera de até várias
semanas. Para dicultar, os exames não eram permitidos
sair do setor de radiologia e o então chefe do serviço de
neurocirurgia daquele nosocômio nos mostrava, quando
tínhamos de gravar os achados nas nossas mentes e
leva-los para a sala de cirurgia alojados no ‘hardware’
das nossas memórias.
Finalmente, conseguimos a tão esperada tomograa,
tendo a mesma comprovado a presença do volumoso
objeto metálico
majestosamente
assentado na sela túr-
cica, apresentando íntima relação a cada lado com as
carótidas internas, com a sua metade superior ocupando
a cisterna supra selar e elevando o quiasma óptico. Res-
tava o que fazer, possuíamos já uma experiência de 3-4
anos com a cirurgia da hipóse por via trans esfenoidal
e concluímos que a remoção deveria ser por essa via,
a mesma que usamos para a abordagem e ressecção
da maioria dessas patologias. Anal, o projétil deveria
sair pelo caminho que entrou.
As diculdades operatórias de então eram enormes. De
um modo geral, as neurocirurgias não eram vistas com
bom grado pelos anestesistas e pelo pessoal circulante
do bloco cirúrgico, não só pela complexidade envolvida
como também pelo longo tempo que demandavam.
Recordo que uma vez, para nos impedir de operar,
colocaram cola
super bonder
no termostato da luz do
microscópio que o tornou imprestável por quase um ano,
tendo eu conseguido que um famoso industrial de Per-
nambuco urgentemente comprasse e nos doasse um des-
ses equipamentos, de outro modo teríamos cado vários
meses sem utilizar técnicas microcirúrgicas. O hospital
não possuía o material especializado para esses proce-
dimentos e tínhamos dessa maneira de trazer o nosso,
inclusive havendo por vezes a necessidade de transportar
eletro-coaguladores especiais, também à
época não disponível no hospital. Exames de imagens
trans-operatórias indispensáveis para essas cirurgias
eram difíceis
de interpretar porquanto havia apenas um aparelho de
Raios-X obsoleto que, mesmo com aventais de proteção
praticamente imprestáveis, nos impregnavam de radia-
ção e o que é pior via de regra produziam imagens
impossíveis de interpretar.
O microscópio cirúrgico, primeira versão da marca bra-
sileira D.F. Vasconcelos, era extremamente rudimentar
no que tange a sua mecânica e a sua óptica, bem dife-
rente dos que hoje utilizamos. Os seus movimentos eram
limitados, pois se faziam através de três a quatro braços
articulados que frequentemente dicultavam sobrema-
neira o perfeito posicionamento em relação ao campo
operatório. Em adendo, a sua objetiva era imóvel e para
esse tipo de cirurgia se fazia necessário colocar uma
objetiva reta, também do nosso acervo pessoal. Tempos
bastante difíceis...
Finalmente, ultrapassadas todas as diculdades consegui-
mos marcar a tão esperada cirurgia. Acessamos como
fazemos para os tumores da pituitária e ao penetrarmos
no seio esfenoidal me deparei com o assoalho selar
destruído e a fossa onde se localiza a hipóse totalmente
ocupada pelo projétil de arma de fogo. A cada lado do
artefato metálico se percebia claramente o pulsar das ca-
rótidas internas localizadas nos seios cavernosos. O que
fazer então? As carótidas poderiam ter sido laceradas
pelo projétil cujos orifícios poderiam estar tamponados
pelo mesmo. Em caso de perfuração carotídea pouco ou
nada se poderia fazer, visto que naquela época ainda
não dispúnhamos de neuro-radiologia intervencionista
que pudesse se necessário proceder a oclusão das lesões
por via endovascular.
Com relutância, lancei mão de uma pinça tipo Love,
instrumento que se usa para remover porções de alguns
tumores cerebrais, e com muito cuidado consegui prender
a base do agente injuriante e vagarosamente comecei a
removê-lo. Ao nal, com o mesmo já totalmente fora da
sela túrcica, localizado já de forma segura no interior do
seio esfenoidal e pronto para ser trazido para o exterior,
eu vi um súbito jato de um líquido advindo do interior da
caixa craniana.
Antes que pudesse raciocinar que o líquido não era
vermelho, uma descarga de adrenalina percorreu o meu
corpo, contudo na verdade era líquido cefalorraquiano
(LCR). Fomos tomados por uma sensação de alívio desde
que a fístula liquórica poderia ser facilmente tratada pe-
los métodos convencionais que utilizamos para remediar
essas situações.
No dia seguinte, já na enfermaria, o paciente me cumpri-
mentou logo armando: Doutor, a ‘hemianopsia’ desapa-
receu completamente, venha ver’! Realmente os campos
visuais haviam recuperado a normalidade e visão estava
totalmente preservada.