2021, 3(2):35-37 e-ISSN: 2674-7103
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DOI: 10.37085/jmmv3.n2.2021.pp.35-37
Jornal Memorial
da
Medicina
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História da Medicina
Bala na hipóse: recordando um caso bastante raro...
Hildo Rocha Cirne de Azevedo Filho
Universidade de Pernambuco, Pernambuco, Brasil
Era ns da década de 70, 1979 se eu bem me lembro. A agressividade e a criminalidade em
Pernambuco particularmente no Recife não se mostravam ainda tão assustadoras e alarmantes
como nos dias atuais. No que tange a neurocirurgia, as agressões do segmento cefálico eram
causadas mais frequentemente por armas brancas e ferimentos corto-contundentes produzidos
por foices e enxadas, em oposição às lesões por arma de fogo que se tornaram uma lamentável
e triste rotina nos nossos serviços de emergência.
O SUS não existia e o único aparelho de tomograa computadorizada do Recife, localizado
no Hospital Getúlio Vargas, atendia os pacientes previdenciários do INAMPS e apresentava
permanentemente uma agenda totalmente lotada. Dessa maneira, para se conseguir o exame
para os pacientes chamados ‘indigentes, esmagadora maioria da clientela do Hospital da
Restauração, era um processo difícil que demandava solicitação de favores, acompanhado
consequentemente de uma longa espera.
Eis que certo dia chega à nossa emergência, naquela época um mar de tranquilidade com-
parada aos dias de hoje, um paciente com idade em torno dos seus 30 anos. Andava sem
problemas e armava que houvera sido atingido por um projétil de arma de fogo no rosto. Na
verdade, havia um pequeno orifício na porção mais alta do lábio superior a direita, quase na
entrada da narina. O pequeno ferimento foi então suturado e o paciente encaminhado para
o já antiquado aparelho de Raios-X.
A princípio cava difícil de acreditar na história contada, haja vista a sua excelente condição
clínica e neurológica. Todavia, ao vermos as placas radiográcas o espanto foi geral, havia
um volumoso projétil, calibre 38 provavelmente, quase que totalmente localizado no interior
da sela túrcica, região anatômica onde se aloja a glândula pituitária.
Examinando melhor o paciente, na enfermaria, pudemos constatar que ele apresentava
uma hemianopsia bi temporal, ou seja, perda dos campos visuais laterais em cada olho,
achado típico das compressões quiasmáticas causadas por tumores hiposários. Afora isso,
o paciente estava muito bem, deambulando e se comunicando sem problemas, interagindo
normalmente com os demais pacientes e sempre disposto a ajudar aqueles que por ventura
viessem a necessitar. Conquistou de imediato a simpatia de todos prossionais de saúde que
trabalhavam naquele setor. Interessantemente, ele se mostrava bastante feliz em mostrar o seu
defeito do campo visual aos estudantes por ocasião das aulas práticas na enfermaria. Dizia
então, prestem atenção quando chegar da metade para fora eu não vejo nada, apontando
as porções mais mediais de ambos os campos visuais laterais. E assim ele colaborou em várias
demonstrações práticas!
azevedoh@uol.com.br
Editado por
Juliana Ramos Andrade
Enviado: 25 de setembro de 2021
Publicado: 10 de dezembro de 2021
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Azevedo Filho HRC
O Exame Para Fellow of the Royal College of Surgeons of Edinburgh
Acontece, todavia que logo nos primeiros dias a assis-
tente social me informou que o ‘simpático’ paciente era
chefe de uma das mais temíveis gangs organizadas da
cidade. Muito pelo contrário, a sua biograa (ou folha
corrida) em nada parecia com o comportamento alegre
e cooperativo no hospital.
O próximo passo seria lutar para conseguir uma tomogra-
a computadorizada do encéfalo que, apesar dos artefa-
tos que por certo o projétil produziria, detectaria a real
posição do corpo estranho, a sua relação com estruturas
vasculares circunvizinhas e possíveis lesões pelo mesmo
produzidas no parênquima encefálico.
Na fase pré-SUS, todos aqueles desprotegidos e sem
qualquer vínculo empregatício recebiam o infame rótulo
de indigentes, enquanto que para os previdenciários
havia um setor no andar onde lhes era propiciado
acomodações mais confortáveis, melhores cuidados de
enfermagem e até refeições mais apetitosas. Além do
mais, poderiam car com acompanhantes, ao tempo
proibidos nos outros setores do hospital. Para os pre-
videnciários as tomograas eram conseguidas rapida-
mente, porém para os pobres indigentes era uma tarefa
hercúlea com uma taxa média de espera de até várias
semanas. Para dicultar, os exames não eram permitidos
sair do setor de radiologia e o então chefe do serviço de
neurocirurgia daquele nosocômio nos mostrava, quando
tínhamos de gravar os achados nas nossas mentes e
leva-los para a sala de cirurgia alojados no ‘hardware
das nossas memórias.
Finalmente, conseguimos a tão esperada tomograa,
tendo a mesma comprovado a presença do volumoso
objeto metálico
majestosamente
assentado na sela túr-
cica, apresentando íntima relação a cada lado com as
carótidas internas, com a sua metade superior ocupando
a cisterna supra selar e elevando o quiasma óptico. Res-
tava o que fazer, possuíamos uma experiência de 3-4
anos com a cirurgia da hipóse por via trans esfenoidal
e concluímos que a remoção deveria ser por essa via,
a mesma que usamos para a abordagem e ressecção
da maioria dessas patologias. Anal, o projétil deveria
sair pelo caminho que entrou.
As diculdades operatórias de então eram enormes. De
um modo geral, as neurocirurgias não eram vistas com
bom grado pelos anestesistas e pelo pessoal circulante
do bloco cirúrgico, não pela complexidade envolvida
como também pelo longo tempo que demandavam.
Recordo que uma vez, para nos impedir de operar,
colocaram cola
super bonder
no termostato da luz do
microscópio que o tornou imprestável por quase um ano,
tendo eu conseguido que um famoso industrial de Per-
nambuco urgentemente comprasse e nos doasse um des-
ses equipamentos, de outro modo teríamos cado vários
meses sem utilizar técnicas microcirúrgicas. O hospital
não possuía o material especializado para esses proce-
dimentos e tínhamos dessa maneira de trazer o nosso,
inclusive havendo por vezes a necessidade de transportar
eletro-coaguladores especiais, também à
época não disponível no hospital. Exames de imagens
trans-operatórias indispensáveis para essas cirurgias
eram difíceis
de interpretar porquanto havia apenas um aparelho de
Raios-X obsoleto que, mesmo com aventais de proteção
praticamente imprestáveis, nos impregnavam de radia-
ção e o que é pior via de regra produziam imagens
impossíveis de interpretar.
O microscópio cirúrgico, primeira versão da marca bra-
sileira D.F. Vasconcelos, era extremamente rudimentar
no que tange a sua mecânica e a sua óptica, bem dife-
rente dos que hoje utilizamos. Os seus movimentos eram
limitados, pois se faziam através de três a quatro braços
articulados que frequentemente dicultavam sobrema-
neira o perfeito posicionamento em relação ao campo
operatório. Em adendo, a sua objetiva era imóvel e para
esse tipo de cirurgia se fazia necessário colocar uma
objetiva reta, também do nosso acervo pessoal. Tempos
bastante difíceis...
Finalmente, ultrapassadas todas as diculdades consegui-
mos marcar a tão esperada cirurgia. Acessamos como
fazemos para os tumores da pituitária e ao penetrarmos
no seio esfenoidal me deparei com o assoalho selar
destruído e a fossa onde se localiza a hipóse totalmente
ocupada pelo projétil de arma de fogo. A cada lado do
artefato metálico se percebia claramente o pulsar das ca-
rótidas internas localizadas nos seios cavernosos. O que
fazer então? As carótidas poderiam ter sido laceradas
pelo projétil cujos orifícios poderiam estar tamponados
pelo mesmo. Em caso de perfuração carotídea pouco ou
nada se poderia fazer, visto que naquela época ainda
não dispúnhamos de neuro-radiologia intervencionista
que pudesse se necessário proceder a oclusão das lesões
por via endovascular.
Com relutância, lancei mão de uma pinça tipo Love,
instrumento que se usa para remover porções de alguns
tumores cerebrais, e com muito cuidado consegui prender
a base do agente injuriante e vagarosamente comecei a
removê-lo. Ao nal, com o mesmo já totalmente fora da
sela túrcica, localizado de forma segura no interior do
seio esfenoidal e pronto para ser trazido para o exterior,
eu vi um súbito jato de um líquido advindo do interior da
caixa craniana.
Antes que pudesse raciocinar que o líquido não era
vermelho, uma descarga de adrenalina percorreu o meu
corpo, contudo na verdade era líquido cefalorraquiano
(LCR). Fomos tomados por uma sensação de alívio desde
que a fístula liquórica poderia ser facilmente tratada pe-
los métodos convencionais que utilizamos para remediar
essas situações.
No dia seguinte, na enfermaria, o paciente me cumpri-
mentou logo armando: Doutor, a ‘hemianopsiadesapa-
receu completamente, venha ver’! Realmente os campos
visuais haviam recuperado a normalidade e visão estava
totalmente preservada.
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Depois de cumpridos os procedimentos de rotina para
pacientes que apresentam saída do LCR em decorrência
dessas abordagens, o paciente ao cabo de 10 dias
recebeu alta, sendo encaminhado para uma das pe-
nitenciárias do estado onde teria de cumprir alguns
anos de detenção sentenciado que fora por crimes pre-
téritos.
Ao sair, agradecendo a todos e risonho, solicitou para
que pudesse falar a s comigo por alguns instantes.
Disse em tom baixo: ‘Doutor, vou lhe dizer um segredo.
Se algum dia o senhor ou alguém da sua família forem
assaltados ou molestados por um elemento do mal,
in forme ao indivíduo esse código que estou lhe passando
(duas palavras se bem me recordo) que serão liberados
imediatamente’. Felizmente nunca precisei usar esse códi-
go e a bem da verdade me esqueci do mesmo. Talvez
nos dias de hoje com a criminalidade fora do controle,
é possível que esse ‘
código de honra
não viesse a ser
respeitado.
Nunca mais ouvi falar desse cidadão, que embora tenha
andado pelos caminhos desgarrados da criminalidade,
não perdeu alguns traços de bondade e gratidão ineren-
tes ao ser humano. Essa relação, até certo ponto estranha,
é uma das belezas da prossão médica.